Eduardo Peres – Palestra Show

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Campeão Mundial de Mágica!

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Eduardo Peres em cena no Congresso (FISM - Federación Internacional de Societés Maquiques - Edição ano 2000 - Lisboa - Portugal)

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A logomarca do Congresso (FISM - Federación Internacional de Societés Maquiques - Edição ano 2000 - Lisboa - Portugal)

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Na plateia da Cerimônia de Premiação, junto a meu pai, Ademir Sabino e meu diretor, Enio Finochi

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Recebendo o prêmio de um dos componentes do juri, o mágico inglês Ali Bongo, e do Presidente do Congresso, o português sr. Marques Vidal

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No palco, junto aos mágicos premiados

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Abordagem de um colega espanhol congressista, registrando uma entrevista

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Em festa com os queridos amigos mágicos brasileiros, Mariô Canto e Ériko Trevensoli

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Celebrando com os queridos amigos mágicos (argentinos) Lipan e Raley, e (espanhol) Jorge Blass

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Celebrando com o estimadíssimo amigo sr. Samento de Lima Morgado, o "mágico Mórgan", responsável por meu primeiro contato, ainda na infância, com a arte mágica.

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Como consequência da premiação, a participação como artista convidado para espetáculos e conferências em Congressos de Mágica internacional. Este, em Vitoria-Gasteiz - Espanha.

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Congresso de Ilusionismo em Santiago - Chile

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Espetáculo teatral em Sindelfingen - Alemanha

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Elenco do espetáculo em Sindelfingen - Alemanha

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Como repercussão da premiação, houve também uma interessante sequência de aparições na mídia do Brasil. Aqui, junto ao meu diretor e querido amigo (in memorian) Enio Finochi, no camarim do programa "Mais Você" (Globo, ano 2000)

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Estados Unidos - Las Vegas (Nevada), junto ao ilusionista Lance Burton

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A aposentadoria do ato: junto ao estimadíssimo amigo (in memorian) Franco Nápoli, o mágico "Ray Francas", na ocasião Presidente do Congresso da Federação Latino-Americana de Sociedades Mágicas FLASOMA, anfitrião de minha despedida, em Buenos Aires - Argentina, em fevereiro de 2004, no camarim, na memerável celebração final

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Em cena, na apresentação de despedida, no espetáculo de gala do Congresso FLASOMA, em Buenos Aires - Argentina, em fevereiro de 2004

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Uma reflexão sobre o ato premiado no Congresso Mundial de Mágica.

(ENSAIO – por Eduardo Peres)

Depois de anos deste acontecimento, finalmente fui convencido a dar a ele um espaço especial em meu website. Decidi, no lugar da publicação de apenas um release informativo sobre o episódio, contar eu mesmo sobre essas memórias e aproveitar a oportunidade para tecer algumas reflexões sobre este ato (assim o chamado “meio mágico” chama uma apresentação-performance de dez minutos como esta) e sobre o acaso do prêmio, linhas que curiosamente eu jamais havia escrito – eu sequer havia cogitado refletir formalmente sobre este tema, embora essas ideias fossem-me sempre tão claras e recorrentes desde então e desde sempre. Assim nasceu este curto ensaio, que aqui compartilho com o público que possa se interessar pelo tema.

Creio que o meu constrangimento natural em relatar esses acontecimentos sem parecer imodesto (tenho pavor de perecê-lo e me constranjo sistematicamente diante de qualquer gesto que possa ser interpretado como auto-promoção, embora para muitos isso pareça aceitável e natural) tenha-me feito evitar essas reflexões desde o acontecido. Mas esforçando-me para evitar essa sensação, avanço nessa redação:

Lembro-me do conjunto dessa experiência com a riqueza de detalhes de quem sempre retoma as lembranças dos pontos-chave da trajetória pessoal, e esse acontecimento evidentemente foi pontual e determinante, no sentido da construção de uma carreira artística. Como mágico, este foi evidentemente o ponto mais alto de minha carreira. E tão cedo: menos de quatro anos após a minha primeira experiência em um palco (minha estreia se deu em 1996, aos 15 anos de idade), acontecia-me este prêmio. Eu tinha dezenove anos de idade naquela data.

Considero-o hoje ainda mais significativo do que quando do ocorrido, tanto mais percebo – com o passar dos anos e com o avançar da maturidade – o inusitado e a ousadia que em tudo isso apareceram. E quanto mais o tempo passa, mais intenso o significado de tudo o que envolve esse assunto. Lembro-me com curiosa clareza apesar do passar de tantos anos (escrevo em 2019 sobre fatos do ano 2000) em todas as suas fases, e creio ser tocado pelas consequências deles até hoje.

Eu breves linhas, tratou-se da competição no “Congresso Mundial de Mágica” o congresso oficial organizado pela “FISM” (assim ele é sempre referido, para dar significado à sigla da entidade organizadora, a “Federación Internacional de Societés Magiques”). É o mais importante congresso de mágica do mundo desde sempre (os demais “congressos internacionais” ou “congressos mundiais”, quando não denotam claro exagero nesta nomenclatura, são sempre de importância histórica e política em nada comparáveis). E a ousadia de disputar uma competição como esta já é em si inusitada: pela importância máxima do congresso (ele acontece de três em três anos com sede em diferentes países e atualmente em diferentes continentes e jamais infelizmente ainda na América Latina), pelo fato de concorrer na mais tradicional das categorias, a “Manipulação” (equiparada ao Peso Pesado no boxe, ou à Fórmula 1 no automobilismo), pela falta completa de tradição do Brasil em Congressos FISM (havia apenas um único ato brasileiro premiado em todos os tempos, o de “Vik & Fabrini” em 1988, um merecido primeiro prêmio na categoria “Magia Geral”) e pela falta completa de tradição de mágicos manipuladores na América Latina (nunca havia acontecido nenhum prêmio para nenhum mágico deste continente nesta tão tradicional categoria desde o início da série histórica do Congresso, em 1962, como não houve mais nenhum outro até os dias atais – escrevo em 2019 -, embora muitos competidores tivessem-no disputado). Mas para um jovem de dezoito para dezenove anos, esses dados históricos a princípio desfavoráveis e convidativos à desistência prévia da aventura não poderiam ser intimidadores. Há uma certa inconsequência e, suponho, uma percepção ainda pouco precisa da dimensão das importâncias deste ou daquele atores e fatores do mundo. Hoje, pensando sobre isso, recordo-me (ou suponho) que eu já tivesse precisamente a dimensão dos significados desses dados, mas ainda assim algo que só provém de uma “ânima de juventude” fazia força para não considerá-los, em nome justamente da aventura e de alguma possibilidade de um bom resultado dessa experiência.

Eu era naquela fase de minha carreira um mágico realmente estudioso e um tanto obcecado pela manutenção da boa-forma técnica: os ensaios se davam por horas diárias e os pensamentos e energias estavam todos canalizados neste ideal – e mais do que insistente com o desenvolvimento técnico, posso concluir – e agora melhor com essa distância – que as minhas preocupações também eram em grande medida ligadas à pretensão de alguma originalidade estética e da leitura muito precisa do que seriam as “tendências” dos atos premiados até então. Este é o centro dessa reflexão: Atribuo – hoje sem mais nenhuma dúvida – muito mais à ambição de uma criação que denotasse algum valor estético do que propriamente à condição técnica de minhas habilidades como mágico manipulador.

Não que eu fosse deficitário tecnicamente como manipulador. Posso avaliar que havia sim alguma virtude técnica na construção de meu ato, e que a execução dele sempre (ou quase sempre) se dava em um nível de acabamento aceitável, mas observo também que minhas habilidades técnicas apenas jamais me levariam a essa conquista – como levou a tantos outros antecessores e sucessores, muito mais competentes tecnicamente do que eu. Creio que o principal centro de razão da alta pontuação que resultou no prêmio (obtive o 3º prêmio com média de 81 pontos, pontuação suficiente para um 2º prêmio – à minha frente, por margem muito justa, com 83 pontos o francês Norbert Ferré e com 85 o japonês Kenji Minemura, dois gigantes sobre quem a seguir tecerei alguns comentários, obtiveram segundo e primeiro prêmios, respectivamente) – retomando, creio que o principal centro de razão da alta pontuação que resultou no prêmio tenha sido a mensagem de provocação estética daquele ato e todos os sub-textos possíveis que dela advém.

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A idealização e composição do ato: Havia um ponto de partida. Para a composição consciente de um ato que propusesse essa possibilidade de alguma originalidade estética – e mais do que isso – que estivesse alinhado a uma eventual “lógica das características que tenderiam a ser consagradas pelo Júri do Congresso FISM” – as tais “tendências” -, era necessário que fosse feita uma pesquisa e um detalhado exame da série histórica dos atos consagrados por esse corpo específico que parecia obedecer a uma lógica: o “Júri do FISM”.

Os jurados do FISM (não necessariamente as pessoas que assumem esse papel – essas variam – mas a filosofia de percepção de valor daquele colegiado específico) obedecia a uma lógica que muito me interessava decifrar. E assim me propus, com a preciosa ajuda do meu amigo e brilhante mágico Élio Martins, mais velho do que eu cerca de quinze anos e detentor já naquela época de uma “videoteca” espetacular em sua casa, com grande parte das edições históricas dos Congressos FISM anteriores gravadas em vídeo (não havia YouTube e a Internet não era o que hoje é) – Élio detinha videos de muitos dos mágicos vencedores e dos que não haviam obtido prêmio, um acervo precioso que me foi amplamente disponibilizado por esse generoso amigo, a quem sempre agradeço por isso e por tanto mais. Graças ao acesso a esse vasto material, dediquei-me a estudar a série histórica e encontrar nessa linha do tempo uma lógica da evolução, evento a evento, dessa tal “ideia de centro de valor”, segundo as perspectivas do colegiado do júri do FISM.

O próprio Elio, mais do que o mero proprietário dos vídeos, era ele mesmo um observador muito agudo da cena histórica (fazia ele comentários sempre interessantes me apontando detalhes e me indicando coisas), além de ter sido ele próprio um mágico manipulador de muito sucesso quando muito jovem: dos dezesseis aos dezenove ou vinte anos – história muito parecida com a minha própria – Élio era o manipulador brasileiro sensação dos congressos do nosso continente, chegando a obter prêmios grand-prix em congressos importantes como o CADI na Argentina, e alguns outros. Muito carismático e muitíssimo mais habilidoso do que eu, Élio sim teria a chamada vocação inata para o desenvolvimento técnico máximo na área. Creio que ele o fez em grande nível. E mais do mesmo aqui necessário: Élio é a generosidade e a amizade em pessoa, comigo e com tantos, uma pessoa para mim e para muitos realmente especial.

Depois então do exame dessa série histórica, estava eu com o desafio da construção de meu ato para o Congresso FISM. Eu vinha de um importante prêmio no Congresso Latino-Americano de Mágica (primeiro prêmio em manipulação) em 1998, no Congresso FLASOMA, uma espécie de FISM regional da América Latina – hoje inclusive ele é assim chamado – FISM-Latinoamerica – o que me credenciava (ao menos do ponto de vista moral, porque naquela data isso ainda não era como é hoje uma regra formal para o credenciamento) para a competição no Congresso Mundial. Vale recordar uma curiosidade: embora o Brasil não tivesse nenhuma tradição na área da manipulação em nível mundial (nunca tínhamos tido um nome com esse alcance), nós éramos, do ponto de vista regional, na América do Sul, um verdadeiro pólo produtor de bons manipuladores. Era uma certa tradição, em comparação por exemplo com a Argentina, país onde a arte mágica é muito mais desenvolvida, onde a média do conhecimento teórico e histórico e mesmo da capacidade técnica é muito superior, e onde sempre houve uma tradição de produção intelectual muito mais relevante em conjunto do que a nossa – e sobretudo um país produtor de Campeões Mundiais em quantidade: Ramblar (Adrián Guerra), Carlos Barragán, o mito Fantásio, Henry Evans (duas vezes, sendo que em uma delas um espetacular primeiro prêmio em cartomagia), Mirko, entre ainda alguns outros. Em cartomagia, são os argentinos referências mundias. Mas curiosamente em manipulação, o Brasil sempre foi protagonista na região: Drakon nos anos 60, Rokan a partir dos 70 e seguindo em atividade até os dias de hoje (o mágico mais brilhante que já vi na vida, um verdadeiro gênio e hoje um amigo muito próximo e querido, a quem nunca deixarei de reverenciar), Dossel (do mesmo período, falecido recentemente, e de um talento também muito particular, embora não fosse exatamente um criador), até a chamada “geração anos 80”: Élio Martins, (o mais premiado desta geração, e desde muito jovem, com uma coleção de conquistas continentais importantes, e em atividade desde antes da fundação da FLASOMA, razão pela qual ele não figura entre seus premiados), Issao Imamura (ele mesmo, colega estimado e manipulador premiado, obteve o 1º prêmio na categoria no FLASOMA 87 e chegou a concorrer no FISM em 88) e Carlos Eduardo (hoje Carlos Hilsdorf, premiado em manipulação no FLASOMA por duas vezes, com o 2º prêmio em 87 e com o 1º prêmio em 89, e que chegou a concorrer no FISM em duas oportunidades nesta categoria, antes e depois de mim, em 1988 e em 2003). Carlos Eduardo conclui a “geração 80” e abriu espaço para um importante intervalo sem aparições. Foi ele mesmo o nome duradouro de lembranças da tradição do Brasil na categoria, quando apareci aos 15 anos, em 1996, e quando obtive a premiação do FLASOMA em 98 (1º prêmio em manipulação) aos 16 (quando competi) e 17 (quando da ocasião da entrega do prêmio, curiosamente no dia do meu aniversário).

Era neste contexto que estávamos, quando em minhas investigações sobre a videoteca do Élio, em 98-99. (Concluo o raciocínio, para a abordagem parecer completa, que depois de mim apareceram como sucessores os manipuladores Klauss (hoje Klauss Durães, mágico talentoso e amigo estimado, que mesmo embora não tendo obtido premiação nos FLASOMAs em que disputou, apareceu no cenário com um número de manipulação interessante) e Caio Ferreira (o único a obter dois primeiros prêmios em congressos FLASOMA – 2009, 2012, e que chegou a concorrer no FISM em 2015, também com um ato de muito valor).

Dizia eu que, nas investigações para a criação do “ato FISM”, a percepção era a de que embora eu viesse de um primeiro prêmio FLASOMA aos dezesseis para dezessete anos, e muito festejado pela crítica da comunidade mágica sobretudo no Brasil e na Argentina como o novo nome – e ainda muito jovem – da categoria na região sucedendo a Carlos Eduardo (com quem eu sempre tinha o nome confundido por razões óbvias – não foram poucas as vezes em que se referiam a mim como “Carlos Eduardo, digo, Eduardo”, razão pela qual – uma delas – eu passei a ser “Eduardo Peres” e ele – não sei se de fato por isso, mas já ouvi do próprio dizer que sim, “Carlos Hilsdorf”), embora viesse eu nesse contexto, eu tinha para comigo que meu ato FLASOMA não estava à altura de uma competição em um Congresso FISM. E embora grande parte dos efeitos e das rotinas que havia no ato FLASOMA tivessem se mantido no ato FISM, a renovação – eu intuia – deveria vir no campo do comportamento e da abordagem estética.

O influência do movimento tropicalista: Tenho dito isso há anos – o tropicalismo foi o gatilho para a construção desse ideário. Em 1997, Caetano Veloso publica o livro “Verdade Tropical”, uma longa reflexão sobre o período tropicalista e o tropicalismo como movimento estético (junto a Gilberto Gil, Gal Costa, Rogério Duprat, Os Mutantes, Tom Zé, Torquato Neto, Capinan e Rogério Duarte, com participação também relevante de Júlio Medaglia, Guilherme Araújo, Nara Leão e Jorge Ben, além das influências e diálogos com Helio Oiticica, Augusto de Campos, o movimento antropofágico de Oswald de Andrade, O “Teatro Oficina” de Zé Celso Martinez Corrêa e O “Cinema Novo” de Glauber Rocha), um tema que começava a despertar meus interesses principais – interesse que se mantém até hoje -, depois da própria arte mágica. Interessado inicialmente em literatura e especialmente no gênero poético, logo caí na canção popular, e por consequência em Chico Buarque e Caetano Veloso. De Caetano ao Tropicalismo e deste para as minhas investigações em arte mágica. Assim se deu. A ideia de criar um ato que valorizasse não apenas o que era tido como a “cultura do bom gosto”, mas também o que pudesse parecer “menos elegante e mais solar e jovial, com o risco de uma eventual ingenuidade e de algum mal-acabamento”. O número tinha, sobre esta plataforma, ainda os elementos solares (das cores e da música), alguma ironia, recados sutis em meio aos elementos apresentados (alguns creio tão sutis que imagino serem só para mim), e uma crescente organizada que comunicava a consciência da proposta. O enredo “Mágico explorando um Bar” era apresentado pelo cenário do ato e os elementos manipulados, e as características citadas acima vinham – além do figurino e da trilha musical – justamente também da apresentação dos efeitos e de seus desdobramentos.

Havia essa consciência no momento da composição do figurino, dos cenários e das rotinas, mas a preocupação essencial era com a música. Em um ato como esse, a trilha sonora comunica muito sobre o que está se passando no palco, e o cuidado com o seu feitio era mais do que um capricho – chegava a ser uma preocupação.

A trilha sonora de meu ato FISM: Desde meu ato de estreia (1996, aos quinze anos) até meu ato FLASOMA (1998), produzia eu mesmo a minha trilha sonora. Assim seria com o ato FISM: eu possuía para essa tarefa um teclado, com bases rítmicas programáveis e alguns efeitos sonoros ilustrativos disponíveis. Comecei escrevendo a rotina, os efeitos mágicos propriamente. Em seguida, fui ao teclado e, contando os compassos e elegendo os melhores ritmos ali disponíveis para cada capítulo do ato, escrevi o que eu carinhosamente chamava de “partitura”. Diferentemente das experiências anteriores, tinha eu dessa vez a intenção de sobrepor a esses ritmos algumas harmonias e mesmo eventuais melodias. Fomos a um estúdio (cujo proprietário era também músico, Ricardo Macedo) – e fizemos em uma unica tarde-noite essa sobreposição da música (improvisada por ele ao teclado) sobre as bases rítmicas (gravadas por mim mesmo no estúdio). Considero esse episódio de rara felicidade. Ricardo e eu logo nos entendemos, e muito das conversas que tivemos nos intervalos, na mesa para um lanche e em momentos muito pedestres terminaram se refletindo em seus improvisos harmônicos e melódicos ao teclado. Lembro-me de ter comentado que o Congresso se daria nos primeiros dias de julho daquele ano 2000, ocasião em que faria dez anos da morte de Cazuza. (Não me lembro como chegamos em Cazuza nas conversas.) Ele então, ao improvisar, acabou mencionado o famoso riff (e mesmo alguns trechos do fraseado melódico) de “Bete Balanço”, ideia aprovada imediatamente. Lembro-me que nem tudo foi aproveitado de primeira. Lembra-me de interromper e sugerir: “Faça mais solar” ou “mais alegre, em tom maior” ou “menos misterioso e mais pueril, mais ingênuo” – sugestões que ele seguia com enorme sensibilidade, talento musical e grande acertividade. Tudo saiu bastante rapidamente. No final, a ideia do fraseado do hino nacional foi dele. Hesitei, pensei em questões burocráticas e mesmo simbólicas, mas terminei aceitando e logo gostando. Gravamos três CDs e assim se deu. Devo parcela importante desse prêmio – e parcela ainda mais importante do “ambiente” criado na apresentação – ao talento e à felicidade dos improvisos de Ricardo. Além de me lembrar dele como a constante gentileza e irreverência em pessoa.

Os ensaios gerais: De posse da música, restavam os ensaios gerais. Não tínhamos certamente mais do que um mês até a viagem. Eu portanto estrearia o ato FISM no próprio FISM. Essa era a intenção. Conseguimos o teatro do colégio onde estudei durante quase toda a vida – o “Externato Casa Pia São Vicente de Paulo”, (através da iniciativa de minha mãe e da generosidade – aliás característica ao longo de sua vida que ainda perdura – da diretora do colégio, a líder católica Madre Maria de Lurdes Barros, a quem aqui volto a sinceridade agradecer) para ensaiar. O teatro me estava disponível desde a manhã até o fim da tarde, e me lembro de ter passado – sem qualquer exagero – períodos de oito a dez horas ali. Ensaiei repetidas e repetidas vezes. Fazia o ato do começo ao final, com o figurino, o cenário, a música, as luzes de cena, a maquiagem. Com exceção da ausência de público, o acabamento era total. Passei ali alguns dias seguidos de rotina intensa. Não me lembro exatamente quantos. Lembro-me apenas da sensação de realização total quando percebia que o teatro era só meu, que o número estava pronto e cada vez mais redondo, e que o resultado do conjunto e dos acontecimentos fosse tão feliz.

A direção de Enio Finochi: Sei que nos dois últimos dias de ensaio, julguei ser o momento certo para submeter o ato ao crivo do Enio, que havia se proposto o dirigí-lo. (Enio Finochi é dos principais quadros da Arte Mágica no Brasil em todos os tempos. Quarenta e cinco anos mais velho do que eu, aproximamo-nos por afinidades em 1996, e estivemos muito próximos – com períodos de maior e menor intensidade – até a sua morte em 2012. Enio foi meu empresário, meu diretor de cena neste ato, meu principal orientador teórico e literário no repertório de Arte Mágica (ele era um historialista reconhecido e um intelectual respeitado na comunidade mágica latino-americana) e um dos grandes amigos que tive na vida. Era natural que o ato passasse pela apreciação crítica dele. Enio estava atuando como diretor no ato de outros dois competidores brasileiros deste Congresso, e de maneira remunerada. Jamais combinamos de ele ser o diretor de meu ato, porque isso estava sub-entendido. Eu queria muito que ele dirigisse, ele demosntrava que queria muito dirigir, e as coisas aconteceram de maneira muito natural. Quando ele foi assistir ao ensaio, tudo estava muito redondo e adiantado. Já vínhamos naturalmente conversando sobre as ideias de vanguarda e do tropicalismo (que ele conhecia menos – Enio não gostava de música popular e esse nunca era um assunto entre nós). O curioso era o seu temperamento estético dúbio e por isso muito lúcido: ora conservador ao extremo, transitando com naturalidade entre o clássico e o que poderia soar cafona, ora muito alinhado com atitudes de vanguarda e revolução estética. Enio era um gigante. Ele assistiu o ato – meus pais também estavam presentes – e me lembro que depois da primeira sessão, todos choramos discretamente, mantendo o diálogo e a euforia. Passei mais umas duas vezes, e ele então sugeriu posicionamentos, expressões, ênfase em determinados movimentos, entre outros detalhes de direção. Segui cada sugestão à risca. Foi uma importante, criteriosa e muito pontual direção, embora apenas na fase final da composição do ato. (Além de diretor, Enio pode ser considerado também como um dos produtores deste show, pelas suas providências encomendando os baralhos sob-medida para esse show na Copag, auxiliando no feitio do letreiro “Bar” do cenário e resolvendo questões importantes de documentação para o Congresso. Ele foi absolutamente fundamental para a realização disso tudo.)

Viagem a Portugal e Competição: Enfim a viagem e a extensa delegação do Brasil para este Mundial. Talvez como nunca outra, antes ou depois desta edição de Lisboa. Já em Portugal, lembro-me da necessidade de não deixar se praticar o ato em nenhum dia para manter a forma. Ficava eu então no quarto de hotel – empilhávamos uma cama sobre a outra – enquanto meus pais (que também viajaram conosco) passeavam pela cidade. O foco era intenso e a minha forma técnica estava absolutamente em dia. Sentia-me preparado.

Início de Congresso, cerimônia de abertura, show de gala, conferências se estrelas da mágica mundial em quantidade, feira de exposição para compra de equipamentos (a “feira mágica”), toda a graça de um congresso FISM acontecendo ao nosso alcance. É natural que eu aproveitasse, embora me sentisse focado na competição (que é aliás a grande graça dos congressos FISM – o público sempre lota os auditórios para assistir, torcer e tentar prever quem serão os próximos campeões mundiais nas oito categorias existentes. Esse ambiente é de uma emoção intensa, sempre.)

Fui escalado para o período da manhã do terceiro dia (de cinco) do Congresso. Lembro-me de ter de estar no teatro às seis da manhã para a montagem (a passagem de som e luz havia sido feita a tarde anterior). Não há glamour nos camarins do FISM. Há aperto e sobrelotação, mas há um sentimento de ajuda mútua que muito me tocou: reparei em pessoas de nacionalidades diferentes se ajudando, emprestando ferramentas, carregando e alocando volumes para a otimização do espaço, sem a rivalidade que o ambiente poderia propor. A língua comum era a da humanidade e a da própria Arte Mágica, que está ali para muito além de barreiras idiomáticas. Foi bonito constatar. Eu estava muito seguro com minha montagem. Não haveria improvisos ou possibilidades se imprevistos. Lembro-me de ter montado meu equipamento-cenário no escuro da coxia esquerda do palco, e ali mesmo me vesti. Estar muito ensaiado e muito familiarizado com a bagagem e a montagem nunca foi tão importante – hábito que mantenho até hoje. Fiz meu aquecimento, minha maquiagem, muita concentração. Entrei. E fiz o de sempre. Fiz o feito tantas vezes na sala de casa. No espelho do meu quarto (recém cedido pelo meu irmão mais velho – eu nessa altura ainda morava com meus pais e até poucos meses antes dividia um quarto com meu irmão mais novo). No teatro da escola. No quarto do hotel. E nas digressões das aulas de geografia, matemática, francês e química, que anos antes, quando ainda estudante, eram espaços certos para pensamentos como “como seria estar no palco de um FISM? Que ‘rotinas’ criar? Qual deve ser a sensação?” Enfim, eu ali estava. E tão pouco tempo depois da adolescência. Meus cadernos na escola eram de matérias escolares nas primeiras páginas, e de rascunhos de ideias para um ato FISM nas últimas. E por mais incrível que possa parecer, muitas delas foram levadas a cabo. A vida – essa era a minha impressão naquela hora – havia sido toda uma preparação para aquele dia. E aquele dia havia chegado. A apresentação foi redonda. E intensa. Senti apenas pelo retorno do som baixo no palco, mas logo me dei conta de que o som na plateia, por ser outro, poderia estar bom (como eu soube depois, de fato estava). Não era necessário para mim ouvir aquela música. Eu já a sabia decór, dadas as tantas repetições. (Sei essa trilha decór até hoje.) Fingi o som alto dentro de mim (o retorno em bom volume teria me facilitado o trabalho, certamente) e apresentei o show, com toda aquela complexidade técnica, sem falhas. O público logo no início criou conexão. O aplauso era mais efusivo do que a média dos outros atos (isso realmente ocorre no FISM: o público gostando, aplausos e euforia. O público não gostando, aplausos protocolares. E o artista sendo incorreto politicamente por qualquer razão que o público assim interprete (como desrespeito a algo ou alguém, humor negro ou maus-tratos a animais), apupos e vaias. É clima de festival em alta temperatura. A conexão se criou e o ato foi crescendo. A cada efeito, ouvia gritos isolados e uma liderança total do palco sobre o coletivo do auditório. Nos finais de cada bloco, os aplausos eram realmente muito acalorados. Relaxei apenas depois de uns bons minutos, para realmente curtir estar ali – sem jamais perder a tensão do foco total e do cuidado com os detalhes e com a interpretação. Um bom indicador da aceitação daquela plateia naquele dia foi a edição do programa da TV japonesa HKL – que detém a exclusividade dos direitos de imagem de todos os Congressos FISM há muitos anos e que sempre faz um programa de cerca de duas horas que depois circula o mundo em DVD (com uma cópia sempre certa na videoteca do Élio): no programa, meu ato junto ao do Kenji Minemura (japonês, 1º premio em manipulação) foram os mais longos de todo o programa, exceção feita ao Grand Prix, que sempre tem o ato veiculado na integra. (Nesta edição de Lisboa, o Grand Prix foi a dupla holendesa “Scot & Muriel”, concorrentes na categoria “magia cômica”.) A integra da minha aparição neste programa da TV japonesa está disponível aqui, no documentário *** Eduardo Peres, 20 anos em cena! *** (BioFilmes, 2016).)

Retomando, a apresentação terminou e o público se levantou para aplaudir. O fenômeno da chamada “standing ovation” não é exatamente comum nas competições, e é notado em atos que “prometem alguma premiação”. Saí de cena com a sensação de dever cumprido. Eu sabia que a conquista ou não de um prêmio dependia de uma série de variáveis que eu não poderia controlar. Defendo que a conquista de um prêmio FISM – tenho dito isso há anos, e frequentemente passando a impressão incorreta de desejar parecer ser modesto – é, mais do que mérito pessoal, também obra de algum acaso sobre o qual não podemos operar. Mas sabia que aquilo que estava ao meu alcance – os resultados limitados em nada pela minha grande vontade mas certamente em alguma medida importante pela minha capacidade artística e pelo meu talento cênico que sabia e sei estarem longe de serem equiparados aos dos mágicos realmente legendários consagrados pelo FISM – enfim, o que estava ao alcance do meu fazer havia sido feito. Era na sequência assistir aos demais, e esperar.

O Congresso aconteceu, e no último dia, a atração principal do evento: a premiação da competição e o anúncio dos próximos “campeões mundiais”, expressão de jargão consagrado na Europa, na América Latina e nos Estados Unidos – e menos frequente no Brasil – para todos os premiados no Mundial. Aqui, “campeão” é um só e os segundos prêmios são os “primeiros derrotados”. Nunca dei demasiada importância para a semântica dissonante da nossa interpretação em comparação com todas as demais – interpretações vindas de lugares todos com muito mais tradição em premiações internacionais do que o Brasil, talvez porque eu tenda a ser brasileiro na maneira de interpretar esse termo. Enio na verdade me sugeriu – quase impôs – que eu usasse “Campeão Mundial de Mágica” em meu material, porque ele ouvia a comunidade internacional em peso dizer coisas como “ahí está Eduardito de Brasil, un pive promessa de la manipulación ayer que se converte en un campeón mundial en el FISM 2000” (como anotado por um crítico informal argentino em um blog), ou Peter Marvey (3º prêmio em manipulação no FISM 1994 – meu antecessor em posicionamento e categoria – e anunciado como “World Champion Magician” no especial de fim de ano da HBO nos Estados Unidos. Entre tantos outros exemplos. Enfim.

Inicia-se a premiação e a tensão é coletiva. À medida em que os vencedores são anunciados, há manifestações de aceitação ou rejeição por parte do coletivo da plateia, como é tradição nos congressos FISM, sem constrangimentos no protocolo. Houve edições (como a de 1994 por exemplo) em que houve protestos intensos contra a outorgação do Grand Prix, no próprio momento do anúncio. Todos compreendem como característica desse evento. Havia cinco brasileiros competindo, e as categorias dos quatro colegas já haviam sido anunciadas, sem resultados para o Brasil. Faltava apenas a última delas, “Manipulação”, a minha. Havia otimismo na delegação brasileira e na argentina (que também torcia por mim) pela repercussão dos aplausos e especialmente pelos chamados “corredores do congresso”: os que vão bem, viram celebridades já na saída do camarim. Eu já havia, mesmo antes da premiação, acordado dois contratos para apresentações em congressos mágicos nos meses seguintes (Espanha e Chile). Isso também é comum. Os organizadores dos congressos locais fazem contato com os competidores que têm possibilidade de premiação antes ainda da premiação, para garantir agenda e a própria acessibilidade do artista. Não deixa de ser uma “aposta”. E quando a aposta não se confirma, costuma-se cumprir a palavra. Anunciaram o 3º prêmio, quando disseram “Brasil”, eu já não ouvi mais nada. A gritaria dos brasileiros e dos argentinos era tal que eu me lembro de não ouvir meu nome com clareza. A primeira expressão que me lembro ter ouvido foi um sonoro “puta que o pariu” do Enio sentado ao meu lado, erguendo os braços e se levantando como quem gritasse um gol em uma partida de futebom de Copa do Mundo assistida de um boteco. Quase que ao mesmo tempo, senti um tapa nas costas que veio não sei de onde, me levantei e não acreditei. Subi no palco e recebi o troféu das mãos do jurado inglês Ali Bongo, uma verdadeira lenda viva da mágica mundial. (Tive algumas horas depois a honra de receber dele uma sugestão muito amistosa, generosa e sorridente, em meio a incentivos e elogios, para trocar as taças de acrílico transparente de meu cenário por taças com cores vivas, para favorecer a fotografia e a visibilidade da manipulação de cartas, sugestão que eu naturalmente tão logo segui.) Eu estava no palco do FISM, entre os campeões mundiais de mágica na mais tradicional das categorias, aos dezenove anos e sendo o único artista latino-americano na história a obter essa premiação nessa categoria – marca que segue inédita até hoje, 2019, quando escrevo. Mas eu certamente disso não me dei conta nessa hora. Eu nada pensava. Eu só sentia.

Logo foram anunciados o 2º prêmio para o francês Norbert Ferré e o 1º prêmio para o japonês Kenji Minemura. E considero justíssimas tais consagrações. Ambos têm números minimalistas, muito potentes e muito originais. Norbert tem um número primoroso. Com recursos de mímica e humor, com passagens de bonita habilidade manual e efeitos claros, em uma interpretação artística notável. (Norbert concorreu com o mesmo ato no FISM seguinte, em 2003 na Holanda, e conquistou o 1º prêmio e o Grand Prix (maior pontuação entre os primeiros prêmios de todas as categorias.) Merecidíssimo. Kenji (que também voltou a competir no FISM 2003 com outro ato parecido e tão bom quanto, e obteve o 3º prêmio) apresentou em 2000 um número para mim especialmente bonito. Também minimalista e original, Kenji apresentou boas rotinas com torrentes de efeitos e graça na coreografia. Adoro esse ato do Kenji. Depois, com ambos fiz amizade. Um pouco talvez pela “tradição de coleguismo”, por termos compartilhado um ranking tão especialmente percebido, um pouco por afinidade real, creio. Reencontrei Norbert em Las Vegas em 2001, quando conversamos por horas e compartilhamos refeições e muita descontração, e Kenji no Congresso Brasileiro de Mágicos 2006, em Barueri-SP. Aqui, tratei de me oferecer para acompanhá-lo e estreitamos a amizade iniciada antes por e-mail. São ambos pessoas pouco presunçosas – ambos praticam uma humildade legítima -, artistas talentosos e historicamente muito importantes. Acho justíssima a classificação do FISM 2000 e me alegro muito de ladeá-los neste ranking. Alegra-me também saber que ambos igualmente gostam de meu ato, apontando nele valores percebidos apenas por quem realmente tem vivência e conhecimento em nossa arte.

Este “ato FISM” no circuito de Congressos: a repercussão do prêmio foi naturalmente intensa, especialmente no circuito de congressos internacionais. E ainda que eu não vivesse e não pretendesse viver deste ato como outros premiados passam a viver depois de um prêmio como esse (eu ainda preferia atuar profissionalmente no Brasil e em atuações faladas – minha carreira de palestrante daria os seus primeiros passos no ano seguinte), acabei realizando um circuito interessante com este ato, ocasiões em que apresentava também uma conferência sobre conceitos e técnicas de manipulação, em inglês ou espanhol. Apresentei esse ato em congressos na Espanha, Argentina (três vezes), Chile, Alemanha, Canadá e Estados Unidos, além de alguns congressos, festivais e galas aqui no Brasil. Houve um episódio importante no fim do ano 2000, que merece ser lembrado aqui: esse ato teve a oportunidade de ser veiculado na íntegra e em rede nacional em um programa especial de fim de ano da TV Record, chamado “Grandes Mágicos do Brasil”. Gravado em um produzido teatro, com um interessante cenário e um criativo plano de iluminação – além naturalmente dos avançados recursos televisivos de que dispõe uma emissora de TV, ter apresentado esse ato na integra e em rede nacional foi uma oportunidade muito especial para a história desse show. (Este vídeo está disponível aqui abaixo.)

A aposentadoria: Depois de quase quatro anos apresentando esse ato – que graças à sua natureza não permite absolutamente nenhum improviso – considerei que seu ciclo estaria concluído. Eu já não tinha mais vontade de seguir repetindo-o, tanto porque ele já havia sido muitas vezes apresentado em congressos e shows de gala no Brasil (em SP e em outros estados), quanto porque já havia também boa exposição dele em eventos mágicos em outros países – além, ele exigia uma boa forma técnica e muitos ensaios antes de qualquer apresentação, e não havia o chamado “mercado comercial” para ele (um número curto, de difícil montagem e exigente de boas condições de palco, luz, angulações etc.), entre outras muitas e subjetivas razões. Decidi então, tão logo ocorresse um ensejo, tratar de “aposentá-lo”. Logo esse ensejo apareceu.

No ano de 2004 haveria como houve o Congresso FLASOMA. A cidade-sede daquela edição seria Buenos Aires. Eu já havia apresentado este ato duas vezes nesta cidade, e estava escalado para o show de gala do Congresso representando o Brasil o mágico Carlos Hilsdorf, com seu naquela data atual ato de manipulacão. (Hilsdorf havia competido poucos meses antes com este seu ato no FISM 2003, e havia sido desclassificado pelo júri ainda com a cena aberta. (Por ordem do Presidente do Júri daquela ocasião, as cortinas foram repentinamente fechadas ainda durante a apresentação, e o argumento oficial foi o de “maus-tratos aos pombos” que com ele atuavam. Não posso opinar da justiça ou não da desclassificação porque eu não estava presente – tampouco há registros em vídeo – mas a notícia de quem lá esteve é a de que houve apupos crescentes partidos da plateia, e de que isso teria sensibilizado o júri. Há quem concorde e há quem discorde desta desclassificação. Isso é tudo o que sei deste episódio.) Hilsdorf já havia sido anunciado para a gala do FLASOMA antes de sua participação no FISM, e três semanas antes do evento na Argentina, alegando problemas de saúde (stress devido a viagens excessivas), ele solicitou o cancelamento de sua presença. Conversei com ele por telefone – quando ele me relatou o que descrevi acima -, e nesta conversa, disse ele ter sugerido o meu nome para substituí-lo. Na sequência, telefona-me da Argentina o Presidente do FLASOMA Ray Francas (amigo muito estimado, pessoa por quem tive muito afeto e grandes afinidades e que tragicamente faleceu aos 48 anos em 2017, em um estúpido acidente de trânsito). Francas já havia me contratado para apresentar este ato no CADI – Congresso Argentino de Ilusionismo em 2001, e voltava então a fazê-lo graças ao imprevisto de Hilsdorf. Declarei a ele que seria então a última apresentação deste ato, uma despedida. Sugeriu ele que anunciássemos então essa notícia, e assim fizemos.

A notícia já circulava informalmente pelos corredores do congresso e eu sentia uma certa comoção por parte dos colegas, acima do que eu poderia prever. A sensação de despedida é sempre em alguma medida comovente, e compreendi o fenômeno. Eu estava particularmente comovido – mesmo estando cançado do ato – e sentia-me feliz por dar a ele essa “aposentadoria anunciada”, sobretudo por ser a gala de um FLASOMA uma ocasião muito digna.

Sábado à noite, um dos teatros mais importantes e luxuosos de Buenos Aires (preciso me lembrar do nome), meados de fevereiro de 2004. O Mestre de Cerimônias daquela gala foi Alex Nebur que tratou de, com muita sensibilidade, anunciar que aquela seria a última apresentação de um ato histórico. Eu havia pedido a ele para convidar quem desejasse a, depois da apresentação, ir ao camarim e levar um souvenir do ato. Pedaços da estrutura do cenário, cartas de baralho etc. Ele assim o fez. (Separei alguns poucos elementos para guardar comigo, e disponibilizei de maneira absolutamente desprendida boa parte dos aparatos para serem oferecidos. O figurino e a estrutura do cenário – o letreiro “Bar” e outros ítens complementares – haviam sido prometidos ao Museu de Arte Mágica de São Paulo, onde se encontram atualmente.) A despedida seria portanto realmente definitiva.

Senti-me nervoso antes de entrar. Lembro-me de ter chorado um pouquinho no aquecimento. As passagens todas da história do ato me ocorriam, e a sensação era de muita alegria pela sua trajetória, o seu legado e a maneira com a qual ele seria lembrado. A apresentação foi efusiva. O aplauso de recepção (nos primeiros segundos do ato) já eram mais intensos do que seriam normalmente, naturalmente pelo contexto de despedida. Fiz com muita garra. E o aplauso de despedida, em pé e com calor humano, jamais me sairá da memória. Foi um desfecho épico para o ato que é sem dúvida o que de melhor eu teria produzido para o circuito mágico. Foi uma emoção. (Depois, houve de fato muita gente no camarim buscando os tais souvenirs, e são raras as ocasiões em que houve tanto afeto depois de uma apresentação. Grande momento.

O legado: Depois dessa longa (e constrangida) reflexão, concluo com esta ideia. Não sou de fato pretencioso, e embora reconheça ter se tratado de um feito épico – pelo próprio prêmio no Mundial, pelo ineditismo de ocorrências como essa para mágicos da América Latina nessa categoria em toda a história do FISM até então e até hoje (2019), pela pouca idade e portanto pelo inusitado do fato, sei que há também limites para denotar o real valor deste fato histórico. Sei que há (houve antes, apareceram depois e certamente ainda haverão de aparecer) muitos e muitos atos e artistas superiores em tantos critérios a este ato e mim próprio. Entre os grandes atos da história do FISM, este ato não figurará. Meu nome tampouco será lembrado com frequência nos debates internacionais sobre esse assunto, embora no meio mágico do Brasil até hoje eu me surpreenda com a cerimônia com a qual muitos conversam comigo. Eu não tenho essa vaidade, e afirmo isso com grande honestidade aqui. Gosto de ser anônimo e me agrada a ideia de ser sempre “mais um”, no sentido mais amplo das questões da vida. Sei que mágicos brasileiros muito mais talentosos do que eu não chegaram (graças a muitas variáveis e acasos) a essa conquista – casos por exemplo de Rokan (minha principal referência nos primeiros anos, minha grande admiração até hoje, meu amigo dos poucos que vêm em minha casa e verdadeiro gênio da manipulação e do domínio cênico), Drakon (que não vi atuar por ter sua carreira nos anos 70 (nasci em 1981), mas que ouço sempre ter se tratado de um gigante), entre alguns outros. Sei que haveria mágicos manipuladores na Argentina com potencial pleno para um prêmio como este, como certamente haverá nos demais países da América Latina. E sei sobretudo que – como já anotei acima – o acaso opera e trabalha com seu potencial imprevisível. Mas sei que fiz algo importante, ousado e histórico. Um ato que foi notado e venceu mais pelo seu caráter estético e conceitual do que propriamente pela seu virtuosismo técnico – o que me faz sentir grande orgulho. Tive também derrotas e fracassos, mas estes não merecerão ensaio público e nem tampouco link especial em meu website. Com os insucessos, reflito, procuro aprender para me refazer, procuro crescer. E com êxitos tão especiais como este, procuro comemorar e refletir, mensurando seus valores e evitando a auto-promoção ou a presunção de atribuir a ele ou a eles, valores superiores aos que de fato eles possam ter. E vamos em frente.

(Fevereiro, 2019)

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ENSAIO: Uma reflexão sobre o ato premiado no Congresso Mundial de Mágica
(por Eduardo Peres)